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Escrito em luz e letras

São retratos, paisagens, fachadas, arvores, pedras ou tão só pedaços de mundo que me entraram pela lente e se me guardaram na mente. Deixo-as gravados aqui, em luz e letras. Podem ser um ponto de partida ou de chegada, uma história contada, fotografada, com sentido ou não. Se uma imagem vale por mil palavras, então, juntemos as duas no mesmo lugar, a par e passo, terra e lua, para que nada fique por dizer.

Jorge

Jorge. O sal em pessoa. Ou a pessoa em sal. Ambos se fundem num rodopio controlado (ou não) de emoções e paixões. Quando o visitamos, nas suas salinas, é difícil não nos encantarmos com tão simples cristal raptado ao mar e ali sublimado por mãos tão hábeis. As mesmas que sabem exactamente quando o recolher.  Ouvindo o vento, sentido o ar e, sabendo bem que está na hora, tiram da água aquilo que não se vê. Calcorreia entre as piscinas de sal como quem salta de conversa em conversa, entrelaçando assuntos começados há anos como se tivéssemos falado há dois ou três minutos.

“Calcorreia por entre as piscinas de sal como quem salta de conversa em conversa”

“Calcorreia por entre as piscinas de sal como quem salta de conversa em conversa”


A flor de sal é apenas uma pequena parte de um todo. Prefiro as pirâmides, não porque saibam diferente, sal é sal, para nós, leigos no assunto (desculpa, Jorge), mas porque visualmente são formas que raramente vemos na natureza, uma geometria quase perfeita, um encontro de partículas que se organizam formando algo impressionante aos nossos olhos. Algo que desconhecíamos que a simplicidade do sal conseguiria fazer. “Abre a mão”, pede-nos, e coloca umas lascas de sal empilhadas, finíssimas, camada sobre camada piramidal, na ponta dos nossos dedos. “Prova”, roga-nos, com entusiamo. No seu armazém, recuperado de uma ruína na salina, não quer electricidade, mantem a tradição, os costumes, e, sobretudo, mante-se fiel a si próprio. Gostou de mim, não sei porquê. Aproveitei, confesso, para lhe roubar uma imagem, ou o que deve ser um retrato, e alguns momentos de pura angústia.


“Deita-te ali, Jorge.” O pedido foi simples mas a execução foi desafiante, já que a saturação de sal na água é elevadíssima, quase que queima.”

“Deita-te ali, Jorge.” O pedido foi simples mas a execução foi desafiante, já que a saturação de sal na água é elevadíssima, quase que queima.”

Tinha de o fazer, e tinha de ser exactamente assim, imaginei-o durante algum tempo, era o único retrato possível de alguém que não se separa, nunca, do que faz.  “Deita-te ali, Jorge.” O pedido foi simples mas a execução foi desafiante, já que a saturação de sal na água é elevadíssima, quase que nos queima a pele. Olhou-me com alguma relutância. Mas nem por isso se inibiu de se atirar lá para dentro como uma criança numa loja de doces. Ou adulto numa montra de salgados.

“Mas nem por isso se inibiu de se atirar lá para dentro como uma criança numa loja de doces ou adulto numa montra de salgados.”

“Mas nem por isso se inibiu de se atirar lá para dentro como uma criança numa loja de doces ou adulto numa montra de salgados.”

Seria um rochedo muito melhor, este que gira à volta do Sol, cheio de fronteiras imaginárias. Houvesse mais dedicação, paixão e resiliência em tudo o que se faz, como este homem do sal. É simples: tira-se da água, entorna-se na terra e, pacientemente, espera-se. É, no fundo, uma lição de vida. Haverá algo mais apaixonante? Tem tudo, sempre, de ser tão complicado? Desde quando, por alma de quem, obscurecemos isto tudo?

Foi preciso muita coragem para fazer esta imagem.

Foi preciso muita coragem para fazer esta imagem.

Ao ver o Jorge ali deitado, em cima daquele manto branco cobrindo a terra castanha, empurrando a sua imagem para dentro da minha lente, senti que temos, todos, enquanto habitantes desta pedra desgovernada, muito que aprender com a simplicidade da natureza. E fazer como o Jorge: pegar no telefone, um ano depois, como se tivéssemos falado ainda esta manhã. Retomar a conversa que ficou algures lá atrás - vamos a tempo, vamos sempre a tempo de voltarmos aos equilíbrios, sejam terrenos, mundanos ou transmundanos -, um assunto entre muitos, mas tão importante que não pôde ficar por dizer: nem que seja um olá! 


E despedir-se, sempre, com um abraço ou um beijo salgado!

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Frederico van ZellerComment