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Escrito em luz e letras

São retratos, paisagens, fachadas, arvores, pedras ou tão só pedaços de mundo que me entraram pela lente e se me guardaram na mente. Deixo-as gravados aqui, em luz e letras. Podem ser um ponto de partida ou de chegada, uma história contada, fotografada, com sentido ou não. Se uma imagem vale por mil palavras, então, juntemos as duas no mesmo lugar, a par e passo, terra e lua, para que nada fique por dizer.

Adélio

Adélio, vimaranense, repara pequenos electrodomésticos e televisores de cinescópio. Tem uma minúscula loja no casco antigo do berço da nação. Não sei porque entrei, talvez porque perguntou se me faltava alguma coisa, nada me ocorreu. Deixei-me levar pela curiosidade do que estava para lá da montra carregada de pequenas peças defuntas. Em dois dedos de conversa, contou-me que está ali há cinquenta anos, no mesmo sítio, nas mesmas paredes, dentro do mesmo ar. Mais anos de labor do que eu de vida. Isto já não é o que era, lamuriou, os tempos voaram desde os estágios em Lisboa, na Grundig primeiro, na Blaupunkt depois. Serviço técnico oficial, lê-se numa placa solitária, perdida no tecto e no mundo, já de pouco ou nada serve. Quando se instalou arranjava auto-rádios roucos, telefonias a válvulas e gira-discos fora das rotações. Chegou a ter empregados, era tanto o trabalho. O pó que assenta na mesa, nos transistores, nas placas de circuitos, fios enrolados, esqueletos de altifalantes espalhados aleatoriamente, e, incoerentemente, ladeando a pequena passagem que dá acesso ao interior, mostra que quase não há clientes. Adélio meneia a cabeça confirmando. Pedi-lhe um retrato, não hesitou por um segundo. Deu um passo atrás, sacudiu o pó, mãos atrás  das costas endireitando-se o mais que pôde, encheu o velho peito respirando de orgulho e espantou a solidão. Mordeu o lábio, nervosamente, mas nunca vacilou. Debaixo daquela lâmpada comprida e tremelicante encontrei uma ode à perseverança. Não cheguei a saber a sua idade. Pouco interessa. Já podia ter fechado as portas. Vai ficando, mais por teimosia, diz. A ver se a idade se distrai e não lhe bate à porta por outros tantos anos. Obrigado, Adélio. Pelo momento,  pela inspiração, e belíssimo retrato que a resiliência ofereceu à minha lente curiosa. 

Adélio na sua loja de reparações em Guimarães

Adélio na sua loja de reparações em Guimarães